sábado, 14 de agosto de 2010

Ética e Responsabilidade Social - 2º Sem.

CIDADANIA NA PASSAGEM DO SÉCULO XXI PARA O SECÚLO XX
Sidnei Ferreira de Vares

1. Uma aproximação com o conceito de cidadania


· O conceito de cidadania: remonta a Grécia Antiga, mais precisamente à Cidade-Estado de Atenas, onde era considerado cidadão aquele que, sendo homem e livre, tivesse nascido nos limítrofes da cidade, tendo, por isso, direito a participar das discussões e decisões políticas que envolviam a Pólis;
· Tratava-se de uma cidadania direta e participativa, onde todos aqueles considerados cidadãos podiam usufruir de seus benefícios;
· Em Roma, o título de cidadão romano tinha um peso enorme, pois, todos aqueles que o possuíam tinham seus direitos civis garantidos;
· Numa acepção moderna, a cidadania passa a se desenvolver na Inglaterra durante o século XVII, mas alcança seu máximo grau de consolidação com a Revolução Francesa do século XVIII e com a Independência Americana;
· O Iluminismo, sem sombra de dúvidas, teve papel decisivo na construção e difusão desse conceito-prática;
· Como aponta (T.H.verificar) Marshall, a cidadania, inclui várias dimensões. Uma cidadania é considerada plena quando combina liberdade, participação política e igualdade para todos, embora esse seja um ideal difícil de alcançar;
· Como propões Marshall, podemos falar em pelo menos três dimensões da cidadania, que abarca, a saber: (a) os direitos civis, fundamentais à vida, à liberdade, à garantia de ir e vir, à manifestação do livre-pensamento; (b) os direitos políticos, que se referem a participação no jogo político pelas vias partidárias e organizadas; (c) e os direitos sociais, ou seja, aqueles direitos que remetem à igualdade de oportunidades e às condições mínimas para uma existência digna, diminuindo as desigualdades sociais e garantindo o bem-estar de todos;
· Os direitos civis garantem a vida em sociedade, os direitos políticos a participação política e os direitos sociais;
· Evidentemente que se soma a isso a necessidade de educar o povo, pois sem educação o exercício da cidadania fica comprometido;
· Se analisarmos a proposta de Marshall, verificaremos que o autor não toma essas dimensões somente do ponto de vista cronológico, mas também do ponto de vista lógico;
· É necessário primeiro conquistar direitos civis, para obter os direitos políticos e, assim, poder lutar para adquirir os direitos sociais. Foi assim na Inglaterra e de certo modo na França;
· Todavia, em alguns países tal processo escapou a lógica proposta por Marshall, o que não nos permite dizer que outras lógicas não sejam possíveis na construção histórica da cidadania;
· Mas de certo modo, a lógica proposta pelo autor mostra-se coerente e, uma vez desviada, pode implicar em atraso ou aberrações na construção da cidadania;
· Diante dessa constatação cumpre alertar que o Brasil enquadra-se nesse segundo caso, ou seja, a lógica de construção de nossa cidadania não passa pela lógica proposta por Marshall;

2. A construção histórica da cidadania no Brasil


· Escolhemos analisar o conceito de cidadania tendo como pano-de-fundo a passagem do século XIX ara o século XX, por alguns motivos especiais;
· Em primeiro o século XIX traz uma curiosidade: ele reúne as três fases que compõem nosso processo histórico;
· Se aceitarmos que o período colonial se estende até 1808, ano da chegada da família real portuguesa ao Brasil, que a partir de 1822 temos um país independente e monárquico em sua forma política até 1889, ano do advento republicano, nos convenceremos de que o século XIX reúne as três fases de nossa formação histórica;
· Assim sendo, o século XIX parece condensar nossa história e é a partir desse recorte temporal que analisaremos o conceito de cidadania no Brasil;

2.1 Período Colonial

· Em primeiro lugar, cumpre dizer que no caso brasileiro tal conceito demorou tanto para despontar e quanto para se desenvolver e certamente ainda não se consolidou plenamente;
· Durante o chamado período colonial, o mais longo período de nossa história, a noção de cidadania inexistia. A própria estrutura política colonial, baseada na grande propriedade e no sistema escravista, impedia seu desenvolvimento;
· O Brasil estava reduzido à condição de colônia de exploração, cuja metrópole não se incomodaria em fornecer os pressupostos básicos para o desenvolvimento da cidadania. Tratava-se de um país agrário, marcado pelo isolamento entre as cidades, pela ausência de um povo politizado e principalmente com um grande número de escravos;
· Os escravos, com se sabe, não eram considerados cidadãos, pois não tinham qualquer tipo de direito, nem mesmo o da própria integridade física;
· Mesmo considerando a existência de uma fração intermediária entre os escravos e os senhores, a população pobre e livre, esta também não dispunha de condições para o exercício dos direitos cívicos. Sem poderio econômico e educação, dependiam dos grandes proprietários para morar e trabalhar;
· Até os grandes senhores não podem ser considerados como dotados de cidadania. Eram, sem dúvidas, livres, votavam e eram votados na condição de “homens bons” da colônia, mas lhes faltava qualquer sentido de cidadania. Enquadravam-se na estrutura sustentada pela coroa portuguesa ocupando cargos no estado sem maiores questionamentos;
· Seria um erro supor que durante o período colonial não houve manifestações sociais contra a colônia, inclusive no sentido da independência do país. Todavia, cumpre lembrar que essas manifestações foram pontuais, ou melhor, regionais, e traziam consigo muito mais uma carga de patriotismo do que cidadania;
· Alguns movimentos como a resistência dos escravos no quilombo dos palmares e a inconfidência mineira, podem ser vistos como movimentos que apresentam o germe na luta pela cidadania, mas ainda pouco desenvolvido;
· A maior parte das revoltas durante o período colonial tem características classistas ou regionais que não nos permite entendê-las como portadoras de um discurso cidadão;

2.2 Período Monárquico


· A chegada da família real ao Brasil trouxe grandes transformações para a colônia. Não só o Rio de Janeiro, lugar que abrigou a corte portuguesa, mas o Brasil todo sentiria as mudanças ocasionadas pela presença da corte;
· Os benefícios e liberdades, ainda que diminutas, conquistadas durante a permanência da coroa portuguesa, explicam o desencadeamento do processo que levou à independência brasileira;
· O fim do pacto colonial e a elevação do Brasil a condição de Reino Unido deu perspectivas diferentes às elites brasileiras, embora não houvesse por parte destes, desejos mais profundos de transformação política;
· A independência do Brasil, proclamada em 1822 não se configurou, diferentemente dos países Américo - hispânicos, num processo truculento;
· Diferentemente de nossos vizinhos, nossa independência foi bastante tranqüila, um acordo de cavalheiros, que envolveu: a coroa portuguesa, que desejava em manter algum tipo de relação com o Brasil; a coroa britânica, maior interessada no comércio com o novo país que estava para surgir; e as elites tupiniquins, preocupadas com fragmentação do território brasileiro;
· Enquanto os processos de independência na América Espanhola desembocaram em repúblicas, nossa independência teve como resultado uma monarquia, mantendo a Casa de Bragança no controle da mais nova nação independente do continente, até ali chamada de “flor exótica” da América;
· E isso foi bom? Ora, o fato de termos uma independência tranqüila não pode ser considerado ruim, mas é também preciso afirmar que todo processo de luta política apresenta-se como excelente espaço de aprendizagem, inclusive no que tange a conquista de direitos civis;
· Ademais, nossa independência não pode ser vista como uma ruptura com o cenário colonial, principalmente porque o sistema escravista e fundiário foi herdado pela monarquia. Em outras palavras, as relações sociais e políticas pouco se alteraram;
· É bem verdade que politicamente tornamo-nos uma nação livre, mas essa condição não alterou a vida da maior parte da população, ainda submetida a um conjunto de relações pouco voltado para participação política;
· A constituição de 1824, embora possa ser considerada bastante liberal pra época, na medida em que baseava na separação dos poderes executivo, legislativo e judiciário, contou com uma anomalia, em parte resultado da insistência de D. Pedro I: o poder moderador. Tratava-se de um poder acima dos demais poderes;
· Pela constituição de 1824, o Imperador tinha poder de dissolver a câmara, nomear senadores, sancionar ou vetar atos do legislativo;
· É verdade que a monarquia propiciou uma ampla participação dos súditos nas eleições, através de uma configuração de caráter censitário, que separava os “votantes” dos “eleitores”. A estrutura eleitoral estava organizada em dois turnos no qual os votantes, homens maiores de 25 anos e livres com renda acima de 100 mil-réis, escolhiam os eleitores, que deveriam ter renda superior a 200 mil-réis e estes, por sua vez, votavam e escolhiam entre os candidatos formando uma lista tríplice, da qual o Imperador escolhia o nome que lhe agradava;
· Todavia, essa participação não se convertia em sentimento de cidadania, na medida em que a população que votava era a mesma despreparada dos tempos da colônia, ficando a mercê dos grandes proprietários;
· Seja pela violência, fidelidade ou mesmo pela comercialização dos votos (principalmente nas capitais), o ato de votar não se converteu em participação efetiva e articulada;
· Com as modificações eleitorais no ao de 1881, que acabaram com as eleições em dois turnos e com os chamados “votantes”, dificultaram a participação do povo no processo eleitoral, elitizando o direito ao voto na monarquia e diminuindo o eleitorado em 90%
· Em 66 anos de monarquia, a participação política da população foi ampla, porém, controlada. Em parte, isso se explica porque as condições coloniais como o escravismo, a ausência de educação popular e a grande propriedade não tinham se esgotado com o período colonial;
· Com a Proclamação da república esperava-se que a cidadania enfim pudesse emplacar, afinal, alguns projetos republicanos pareciam apontar para esse sentido, como é o caso do projeto dos jacobinos. Todavia, liberais e positivistas tratariam de reduzir as chances daqueles;
· A abolição foi a única inovação política nessa transição que, embora tenha sido uma grande conquista para a população negra, não se converteu na aquisição de direitos civis. A passagem da condição de escravo a de cidadão foi muito mais semântica do que política, dada as condições paupérrimas que os ex-escravos foram submetidos;

3. O Período Republicano

· A Proclamação da República só pode ser entendida dentro de certas circunstâncias políticas, econômicas e sociais, iniciadas, pelo menos, desde 1870 com o fim da Guerra do Paraguai;
· Sem tempo, porém de aprofundarmos esses fatores, cumpre ao menos informar que o capitalismo se expandia do centro do sistema (Europa) e atingia igualmente a periferia, no qual se enquadrava o Brasil e a Proclamação da república foi resultado desse processo;
· A mentalidade do progresso gradualmente ganhava forma nos grandes centros urbanos brasileiros. Todavia, colidia com o marasmo e a lentidão do interior do país;
· A percepção do tempo diferia nessas duas realidades: a urbana e a rural. A sensação linear do tempo nas cidades se contrapunha a sensação circular do tempo nos rincões do país;
· Os grandes centros com Rio de Janeiro e São Paulo recebiam levas de imigrantes e uma industrialização crescente. Os interiores, por sua vez, ainda arraigados às tradições regionais, espreitavam com desconfiança a demoníaca República que se instalou em 1889;
· Euclides da Cunha soube como ninguém captar esses dois “brasis”: o do “litoral” e o do “interior” como expôs em Os Sertões com grande sensibilidade analítica;
· A República que apareceu na manhã de 15 de novembro, segundo alguns comentadores da época deixando o povo “bestializado”, não pouparia agora o país das inovações, em sua maioria importadas, tornando grandes centros brasileiros em estrangeiros dentro de seu próprio país, marcado pelos “rudes patrícios do interior” e os separando por séculos;
· A mentalidade do progresso se lançava contra o que considerava “atraso”, os resquícios do período monárquico, pois a República era a própria novidade em pessoa;
· Uma série de reformas, projetos de urbanização e novas tecnologias foram introduzidos nos grandes centros alterando o ritmo de vida da população urbana;
· Mas esse ideal progressista, não seria capaz de ampliar a participação política, os direitos civis e a seguridade social dos cidadãos;
· A primeira Constituição Republicana, promulgada 1891, ainda que de natureza distinta da constituição de 1824, principalmente pelo federalismo, não foi capaz de implementar a cidadania no regime nascente;
· Se o voto censitário e o centralismo foram abolidos, a restrição aos analfabetos, herança da reforma de 1881, foi mantida e tornou-se um empecilho a uma população majoritariamente sem instrução, mesmo nos grandes centros como São Paulo e Rio de Janeiro;
· Ademais, a herança da grande propriedade sobreviveu ao advento republicano e os velhos/novos “donos do poder” logo utilizariam a nova constituição para garantir seus privilégios, reforçando seu poder local dentro de um sistema de manipulação política;
· A violência e a intimidação, somada a baixa renda e instrução da população tornaram-se a própria negação da cidadania;
· Afinal, as transformações políticas ocorridas durante a segunda metade do século XIX se deram de cima para baixo, excluindo o povo. Agora, o povo permanecia excluído, pois, em essência, era o mesmo do período anterior, sem contar, contudo, com a proteção do monarca;
· A República Oligárquica instaurou uma lógica da opressão baseada na violência e manipulação através de mecanismos como o “voto de cabresto”, ”o voto de bico-de-pena”, ou seja, um jogo de cartas marcadas que camuflou um dos mais cruéis períodos da nossa história, só superado depois de 1945;
· Podemos inferir que a República, embora fosse uma ruptura política com o Império, oportunizou aos grandes latifundiários se instalarem no poder e dele usufruir sem qualquer preocupação com a promoção da cidadania;
· Voltando a reflexão de Marshall, podemos afirmar que a lógica da cidadania no Brasil foi outra. Os direitos civis e sociais foram negligenciados pelo menos até 1930;
· E embora os direitos políticos tivessem sido conquistados a partir da independência em 1822, o povo ficou impossibilitado de usufruir seus direitos políticos em virtude dos mecanismos de opressão que as elites fundiárias montaram a partir do império, dando continuidade durante a República.

Para saber mais: CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: o longo caminho. 4ª Ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

Um comentário:

  1. Parabéns pelo blog!

    Me fez lembrar as disciplinas da faculdade, e claro, acrescentando um novo olhar na riqueza dos saberes compartilhados.

    Um abraço!

    ResponderExcluir

Seu comentário é sempre bem vindo! Comente, opine, se expresse! Este espaço é seu! Prometo responder você assim que possível...
Espero que tenha gostado do blog e que volte sempre!

"Não há saber mais ou saber menos: há saberes diferentes". (Paulo Freire)