quinta-feira, 27 de setembro de 2012

Concepção de Criança na Atualidade


Viviane Aparecida da Silva ¹


Crianças sempre existiram. Em algumas épocas eram menos vistas, ou tratadas como animais, como subalternos, frutos do pecado, ou desprezadas. A alta taxa de mortalidade contribuía para o pensamento de desapego sobre elas. Goulart (2008, p.23) descreve brevemente a evolução cronológica do conceito de criança desta forma: (1) infanticídio: combinação entre as práticas adotadas para lidar com a aura da morte e da contramorte, esta última baseada na prática de crendices para combater a alta mortalidade; (2) abandono: quando as crianças eram negociadas: vendidas e trocadas; (3) ambivalência: sentimento produzido quando a criança é autorizada a ingressar no mundo adulto entre os séculos XIV e XVII; (4) intrusão e socialização: são quase simultâneas: a intrusão do adulto no percurso de vida da criança, a partir do século XVIII, e a socialização e a condução da criança no sentido de alcançar regras, valores e atitudes, a partir do XIX; (5) ajuda: os pais como meros auxiliares e construtores no processo de desenvolvimento dos filhos, a partir do século XX. 
Essa síntese aponta para a análise das relações existentes entre os adultos e as crianças, ora com atitude de tutela, ora com desprezo ou abandono, ou, ainda, como projeção de alguém que o adulto não foi. É importante trazer aqui essas informações, pois as escolhas pedagógicas passam, necessariamente, pelas formas de ver e as maneiras de dizer quem é a criança. 
É certo que o presente momento histórico requer outro olhar para a criança. A complexidade do mundo atual, as evoluções científicas e tecnológicas, a expansão dos grandes centros urbanos, as organizações familiares e sociais têm colocado em crise algumas certezas que sustentavam as convicções humanas.
Há na atualidade uma gama de leis e declarações²  que, a partir da década de 1980, garantem os direitos fundamentais da criança e a colocam como prioridade. Na legislação brasileira, ela é considerada um cidadão, com direitos. No Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), Lei 8069/90, o art. 3º prescreve:
A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade.
Além da legislação, crescem as pesquisas e os debates que defendem que ideia de infância não pode ser universal, fixa e precisa e que apontam para a diversidade de infâncias, constituídas a partir de contextos, épocas, culturas e histórias diferentes. Essas pesquisas se propõem a entender a infância na perspectiva da sociologia, e defendem a criança como agente social, construtora de si e dos seus contextos de vida, um ser social competente, com uma voz que exprime todo o seu pensamento racional e com competência para fazer escolhas (JAMES, ZENKS E PROUT, 1998; PINTO, 1997; PROUT E JAMES, 1990; SIROTA, 2001).
A sociologia da infância vê a infância como objeto sociológico, superando a visão biologista, que a reduz a “um estado intermédio de maturação e desenvolvimento humano; e psicologizante, que tende a interpretar as crianças como indivíduos que se desenvolvem independentemente da construção social das suas condições de existência e das representações e imagens historicamente construídas sobre e para eles” (SARMENTO, 2004, p. 363).
Considerar as vozes das crianças e as culturas infantis no currículo da educação infantil pressupõe acreditar na concepção de criança como produtora de cultura e por esta produzida. A expressão “culturas infantis” refere-se às representações que são estabelecidas socialmente no espaçotempo³  em que as crianças vivem e no que elas produzem com outras crianças. Essas produções constituem suas práticas significantes, em que as crianças “recompõem a cultura material e simbólica de uma sociedade. Elas fazem sua releitura do mundo, isso é, leem o mundo adicionando novos elementos geracionais, recriando-o e reinventando-o” (MEC/SEB, 2009c, p. 31-32), produzem criativamente o que alguns autores cunharam de “cultura de pares”, ou seja, um conjunto de atividades, artifícios, valores que a criança apreende do mundo adulto, cria e partilha na interação com o grupo de crianças (CORSARO e EDER, 1990; CORSARO, 1997; SARMENTO, 2004; DELGADO e MÜLLER, 2005).
Segundo Corsaro (1997, p. 5), “as crianças são agentes ativos que constroem suas próprias culturas e contribuem para a produção do mundo adulto”. Mais que imitação, suas produções são singulares e inovadoras. Considerá-las como sujeitos ativos e produtores de cultura, é destacar a imprescindibilidade de construir currículos que contemplem a produção simbólica das crianças e a “constituição das suas representações e crenças em sistemas organizados, isto é, em culturas" (PINTO E SARMENTO, 1997, p. 20).
Entender a infância como categoria geracional possibilita perceber o que separa e o que une as crianças dos adultos, assim como o processo em que as “variações dinâmicas que nas relações entre crianças e, entre crianças e adultos, vai sendo historicamente produzido e elaborado” (SARMENTO, 2004, p. 366), já que um dos componentes importantes da cultura infantil é a interação. A interação é uma necessidade e um desejo que a criança vivencia com outras crianças da mesma geração, definida esta por Karl Mannheim apud Sarmento (2004, p. 363) como 
[...] grupo de pessoas nascidas na mesma época, que viveu os mesmos acontecimentos sociais durante a sua formação e crescimento e que partilha a mesma experiência histórica, sendo esta significativa para todo o grupo, originando uma consciência comum, que permanece ao longo do respectivo curso de vida. 
A interação social torna-se o “espaço de constituição e desenvolvimento da consciência do ser humano desde que nasce” (VYGOTSKI, 1991). O encontro com os outros dá significado ao que a criança vai aprendendo do mundo. Sua aprendizagem vai depender das experiências de interações que estabelece. Vygotski chama a interação social de situação social de desenvolvimento, para afirmar que a relação estabelecida entre a criança e o meio que a rodeia é única e irrepetível em qualquer momento do seu desenvolvimento. Segundo Moro (2009, p. 109), “para ele, todas as mudanças que se processarão no desenvolvimento da criança durante uma determinada idade têm relação com esta situação social de desenvolvimento”. 
A interação, o afeto e a certeza da presença efetiva do outro é essencial para a criança. De acordo com o documento Práticas cotidianas na educação infantil: bases para a reflexão sobre as orientações curriculares (MEC/SEB, 2009c, p. 23):
As crianças pequenas e os bebêssão sujeitos que necessitam de atenção, proteção, alimentação, brincadeiras, higiene, escuta, afeto. O fato de serem simultaneamente frágeis e potentes em relação ao mundo, de serem biologicamente sociais, os torna reféns da interação, da presença efetiva do outro e, principalmente, do investimento afetivo dado pela confiança do outro. 
É certo que as crianças vivem, pensam, sentem e experimentam o mundo de um jeito muito próprio. Sendo assim, no decorrer da construção e elaboração do conhecimento, "as crianças se utilizam das mais diferentes linguagens e exercem a capacidade que possuem de terem idéias e hipóteses originais sobre aquilo que procuram desvendar” (Brasil, 1998b, v. 1, p. 21 e 22). Esse conhecimento constitui-se nas interações e nas experiências cotidianas e coletivas que possibilitam o contato com um mundo concreto e complexo, o que permite que a criança, “ao se relacionar com esse mundo, complexifique também sua apreensão daquilo que conhece, e internalize situações cada vez mais sofisticadas do ponto de vista de suas potencialidades psíquicas” (SOUZA, 2007, p.125). 
Na construção e elaboração do conhecimento, a criança exercita a capacidade de construir hipóteses sobre o que deseja aprender, com uma linguagem que lhe é peculiar: o brincar. Para Meirelles (2009, p. 102), brincar  se aprende brincando, e é brincando que se dá sentido às descobertas e que se busca a autorrealização. Segundo a autora, a criança aprende brincando espontaneamente e movimentando-se. O brincar e o movimento são necessidades vitais para a criança, tanto quanto o sono e a alimentação. Essa característica pede novos arranjos espaciais e temporais para a educação infantil, que possibilitem à criança brincar com seu grupo com autonomia para escolher materiais alternativos e brinquedos, com tempo livre para a criação e a imaginação, e amplidão de possibilidades espaciais para movimentar-se, que encorajem suas descobertas. 
Cresce a ideia que a criança tem, desde seu nascimento, múltiplas linguagens5 para se expressar, sendo a cultura lúdica a maior expressão da infância. Segundo Corsaro, ao brincar, as crianças imitam os comportamentos observados dos adultos, mas distorcem-nos para poder preencher os seus sonhos e encontrar soluções para as suas frustrações, medos, os desejos de controlar o (seu) mundo num processo de reprodução interpretativa (CORSARO, 1986, 2002). A ludicidade se articula tanto à aprendizagem quanto à interação, além de favorecer a produção imaginativa e a ampliação de repertórios. A criança pequena apreende brincando, sozinha ou com outras crianças, com a diversidade de linguagens que estão no mundo.
Para Vigotsky, a atividade mediada por signos é primordial no desenvolvimento de seres humanos, na qual a linguagem tem um papel principal. Ainda segundo esse autor, “decorrentes dessa mediação, as funções ou processos psíquicos inicialmente sociais, interpessoais, passam a ser internalizados, transformando-se em funções ou processos individuais,  intrapessoais” (VIGOTSKY apud MORO, 2009, p. 109). Para o bebê e a criança bem pequena, a linguagem verbal viabiliza o contato e a descoberta do outro. Bodrova afirma que “a brincadeira de faz-de-conta contribui para o desenvolvimento de um aspecto importante da linguagem oral, a metalinguagem, ou seja, a consciência acerca das relações e estruturas da língua da qual ela é falante” (BODROVA apud MORO, 2009, p. 109).  
Para Vigotsky, “quanto mais ver, ouvir e experimentar, quanto mais aprender e se apropriar, quanto mais elementos reais dispuser em sua experiência, tão mais considerável e produtiva será, na igualdade das demais circunstâncias, sua atividade imaginativa” (VIGOSKY, 1990, p.18, tradução livre). As crianças pequenas aprendem nas atividades simbólicas e ações significativas. Vê-se assim que cuidar do desenvolvimento humano na infância requer estar atento às possibilidades de atividades relacionadas ao brincar e de interações oferecidas à criança, para que ela dê sentido ao mundo e interprete-o, se aproprie daquilo que sua cultura lhe propicia e faça novas contribuições para a cultura existente.
A partir da reflexão desses autores, o convite que se faz é para perceber e entender melhor as crianças; ouvir suas vozes, mesmo que ainda não dominem totalmente as regras da língua; respeitá-las, pois são sujeitos de direito; garantir seu cuidado e proteção, pois estão em condição peculiar de desenvolvimento e percebê-las pertencentes a uma geração que produz cultura e por ela é produzida. 

 Mestre e Doutoranda em educação:currículo pela PUCSP, pesquisadora, formadora de professores. 

 Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988; Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança, Resolução 44/25 de 1989, da Assembléia Geral das Nações Unidas; Declaração Mundial sobre Educação para Todos – 5 a 9 de março de 1990, Jomtien, Tailândia; Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei 8069/90; Lei de Diretrizes e Bases da Educação, Lei 9394/96 (GOULART, 2008).

Dimensão material do currículo que se entrelaça e deve ser assumido em sua multiplicidade e complexidade onde os anseios, sentimentos e pensamentos dos educandos devem ser ouvidos e considerados como forma de produção cultural (ALVES apud FELÍCIO, 2008, p. 23).

Seguem-se nesta pesquisa as orientações do MEC que compreendem bebês como crianças de 0 a 18 meses; crianças bem pequenas de 19 meses a 3 anos e 11 meses; crianças pequenas entre 4 anos e 6 anos e 11 meses (MEC/SEB 2009c).

Na experiência com parceiros, o bebê é ajudado a significar as situações vividas e a construir sistemas semióticos pelos quais vai se apropriando das múltiplas linguagens do seu meio: de início, as gestuais e expressivas e depois as linguagens simbólicas em sua presença como ação, como saber e não como conhecimento sistematizado (MEC/SEB, 2009c, p. 83).

Como citar trechos desse artigo: Conforme SILVA (2010)  “xxxx xxxx xxxx xxx”
Na referência bibliográfica colocar:
SILVA, V. A. Análise da Implantação de um Currículo para a Educação infantil. Dissertação (Mestrado em Educação: Currículo). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUCSP. São Paulo, 2010.

Um comentário:

  1. Bom dia

    Gostei muito deste texto, pois estou fazendo uma pesquisa para o meu TCC, o qual será sobre a importância do conhecimento histórico sobre o processo de desenvolvimento da Educação Infantil, pois só assim poderemos valorizar esta área da educação e o trabalho docente nela desenvolvido.
    Sem mais no momento,

    Luciana

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