sexta-feira, 28 de setembro de 2012

Educação Infantil Brasileira: Algumas Considerações


Viviane Aparecida da Silva ¹


Foram intensas as tensões e transformações ocorridas no contexto legal e político brasileiro, pelas quais o atendimento público de educação voltado às crianças de 0 a 6 anos passou nos últimos vinte anos. A fim de situar como se deram essas transformações, faz-se uma breve apresentação dos fatos e dispositivos sociais e jurídicos que se articulam para garantir o direito social à educação infantil.
A visão assistencialista de amparo e filantropia ou o enfoque escolarizante, pautado no modelo do ensino fundamental, predominaram nas propostas de atendimento a crianças pequenas durante muitos anos no contexto brasileiro (KUHLMANN, 1998). Em épocas de regime militar no Brasil, no período que precedeu a redemocratização, ganharam força as propostas pedagógicas compensatórias, para que as crianças mais pobres conseguissem acompanhar os currículos. As crianças com condições socioeconômicas mais favoráveis, por sua vez, tinham acesso a melhores oportunidades educativas. O acesso à educação com qualidade, como direito de todos, ainda estaria por conquistar.
Para Haddad (1998, p.1):
Nas informações históricas é comum a menção a dois tipos predominantes de estabelecimentos destinados ao atendimento à criança pequena desenvolvendo-se lado a lado, com objetivos e clientelas bastante distintos. Um, com funções sobretudo tutelares, funcionando a maior parte do dia e orientado para atender as necessidades básicas (segurança, higiene, bem-estar, proteção alimentação e aquisição de hábitos) de crianças provenientes de famílias em condições precárias de sobrevivência. Outro de caráter intencionalmente educativo, dirigido prioritariamente às classes mais favorecidas, funcionando apenas algumas horas por dia e destinado a enriquecer e completar as experiências das crianças, através de atividades estruturadas.
Com o advento dos movimentos populares e do marco legal brasileiro, a educação de crianças começa a adquirir novo estatuto no campo das políticas e lutas educacionais.
Os movimentos sociais do final da década de 1970 tiveram importante papel social para a inclusão das crianças na educação infantil. Segundo Campos (1985, p.88 e 89), nessa época, moradores se reuniam em clubes de mães e outros tipos de associações de vizinhança, buscando juntar forças para lutar por seus direitos, porém “o Estado não atende totalmente às reivindicações populares, mas, na interação com os movimentos sociais, acaba por legitimá-las, respondendo, ainda que parcialmente, a muitas demandas locais”.
A luta por creches na cidade de São Paulo é um exemplo da participação comunitária e popular que antecedeu o momento de redemocratização do país, na década de 1980. Segundo Gohn (1985) e Campos (1991), as leis vieram depois das conquistas.
A partir dos anos de 1980, a participação foi referência obrigatória a todo plano, projeto ou política governamental como sinônimo de descentralização² , em oposição à centralização dos regimes militares. Mais tarde, a participação comunitária e popular dá lugar à participação cidadã e social. Na redemocratização do país, a participação passa a ser concebida como “intervenção social periódica e planejada, ao longo de todo o circuito de formulação e implementação de uma política pública, porque toda ênfase passa a ser dada nas políticas públicas” (GOHN, 2003, p.57).
A história de lutas por creches e pré-escolas, fortalecida pelos movimentos sociais, influenciou nas decisões dos governos, “principalmente aqueles que se instalaram pós-abertura política”, para investir na ampliação do direito à educação das crianças (BARBOSA, 2006, p. 15). Iniciava-se lentamente a mudança da concepção de creche como dádiva da filantropia para a garantia do direito de todas as crianças à educação de qualidade.
A criança deixou de ser objeto de tutela, para ser reconhecida como sujeito de direitos, a partir da Constituição Federal de 1988. Advinda das lutas sociais e da mobilização popular, a Constituição Federal de 1988 colocou crianças e adolescentes como prioridade absoluta quando enunciou, no art. 227:
É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
A Constituição Federal de 1988 representou um avanço por inaugurar um novo olhar para a implementação de políticas públicas para a criança, que passou a ter direito de ser atendida em creches e pré-escolas. A partir desse momento, iniciou-se o processo de vinculação do atendimento à área da educação, antes realizado pelas áreas da Assistência ou da Saúde.
Nos anos posteriores à Constituição de 1988 cresceram as preocupações sociais  com a infância, pois a partir dessa legislação, concretizou-se a educação como direito público subjetivo³ .
O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), Lei 8.069, de 13 de julho de 1990, veio referendar o art. 227 da Constituição e colocou, no art. 54, inciso IV, como dever do Estado o atendimento em creche e pré-escola às crianças de zero a seis anos de idade.
Na esteira da nova Constituição e do ECA, a educação infantil brasileira teve sua regulação como primeira etapa da educação básica, a partir do marco regulatório da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), Lei n° 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabeleceu como finalidade de educação infantil o desenvolvimento integral da criança até seis anos de idade,4 em seus aspectos físico, psicológico, intelectual e social, complementando a ação da família e da comunidade. O art. 30 da LDB/1996 estabeleceu que a educação infantil seja oferecida em: “I - creches, ou entidades equivalentes, para crianças de até três anos de idade; II - pré-escolas, para as crianças de quatro a seis anos de idade”.
Desse modo, no tocante à questão escolar do Brasil, com a LDB/1996 é declarada a obrigatoriedade do Estado à oferta da educação infantil. Porém, modificar a concepção de educação assistencialista significa “atentar para várias questões que vão muito além dos aspectos legais. Envolve, principalmente, assumir as especificidades da educação infantil e rever concepções sobre infância e aprendizagem” (RCNEI, 1998, p. 17).
Nesse sentido, nas últimas décadas, a educação infantil intensificou o processo de firmar sua identidade no campo educacional, no caminho de consolidar os direitos sociais da criança a um atendimento de qualidade. As políticas públicas foram influenciadas pela produção teórica sobre a infância, as crianças e as especificidades dos currículos para a educação infantil. O Ministério da Educação (MEC), para organizar e subsidiar os sistemas de ensino, nas últimas décadas organizou um conjunto de documentos orientadores da prática para a educação infantil. Um deles se destaca por ser utilizado por aproximadamente 58% dos professores,o Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil (RCNEI). Consiste num conjunto de referências e recomendações não obrigatórias para as práticas pedagógicas, que objetivam garantir certa unidade qualitativa às propostas das instituições e fornecer subsídios teóricos aos professores de educação infantil. É importante relatar sobre esse documento, já que o foco desta pesquisa é investigar a implantação de um currículo para a educação infantil. A existência do RCNEI fez aproximações nos currículos desenvolvidos no território brasileiro, a partir de bases nacionais comuns. Iniciativas como essa trazem em seu bojo o discurso da qualidade na educação infantil.
Para Moreira (1993, p. 45), “pensar em uma escola de qualidade implica, em última análise, refletir sobre currículo e ensino, tendo-se em mente, entretanto, que a reflexão não pode ser desenvolvida sem uma significativa referência à sociedade”. 
De acordo com Parâmetros de Qualidade para a Educação Infantil (MEC/SEB, 2006), qualidade é “oferecer às crianças condições de usufruírem plenamente suas possibilidades de apropriação e produção de significados no mundo da natureza e da cultura” (p.18). Alguns aspectos são levantados para servir de subsídio para o conceito de qualidade na educação infantil, como a compreensão da dimensão do cuidado; a organização de espaços e do tempo; a concepção de criança integral, ou seja, com corpo, mente e sentimento, que aprende inserida num grupo e produz cultura com seus pares (BARBOSA, 2000; FARIA,1999; HORN, 2003; ROCHA, 2001, 2000, 1999; MORO, 2009; SARMENTO, 2004). São questões que buscam superar concepções consolidadas nas décadas de 1970 e 1980, quando o atendimento era marcado pelo objetivo de compensar carências culturais das crianças de baixa renda ou prepará-las para o ensino fundamental, e afirmar a identidade da educação infantil, conforme asseverou Rosemberg (2002, p.77):
A busca na educação infantil [...] de igualdade de oportunidade para as crianças [...] [a fim de que] a educação infantil não produza ou reforce a desigualdade [...]; a adoção de uma concepção ampla de educação aberta, indo além dos modelos que aqui conhecemos, de educação escolar; isto é, uma concepção de educação em acordo com a nova maneira de olhar a criança pequena que se está construindo no Brasil, como ser ativo, competente, agente, produtor de cultura, pleno de possibilidades atuais e não apenas futuras. 
Os primeiros anos são momentos de intensas e rápidas aprendizagens para as crianças. “Elas estão chegando ao mundo, aprendendo a compreender seu corpo e suas ações, a interagir com diferentes parceiros e gradualmente se integrando com e na complexidade de sua(s) cultura(s) ao corporalizá-la(s)” (MEC/SEB, 2009c). Portanto, a educação infantil, em sua especificidade de primeira etapa da educação básica, deve ser pensada como direito de todas as crianças. Considerado o acesso à educação um direito da criança, os sistemas de ensino assumem a responsabilidade por essa etapa da educação e comprometem-se em desenvolver propostas pedagógicas para o atendimento das crianças, considerando a importância de favorecer a constituição de espaços institucionais, não domésticos, de cuidado, de socialização e de educação infantil. 
O art. 7, inciso II das Diretrizes Curriculares para a Educação Infantil (CNE/CEB 05/2009) afirma que:
A educação infantil, primeira etapa da educação básica, é oferecida em creches e pré-escolas, as quais se caracterizam como espaços institucionais não domésticos que constituem estabelecimentos educacionais públicos ou privados que educam e cuidam de crianças de 0 a 5 anos de idade no período diurno, em jornada integral ou parcial, regulados e supervisionados por órgão competente do sistema de ensino e submetidos a controle social.
O uso da terminologia educação infantil e não de ensino infantil anuncia a necessidade de estabelecer um currículo apropriado para a criança pequena, que não reproduza a escolarização do ensino fundamental nem tampouco seja uma etapa preparatória para os anos seguintes de escolaridade (BARBOSA, 2006). Nessa perspectiva, as instituições de educação infantil que consideram as especificidades e singularidades de cada criança, devem privilegiar o acolhimento e o aconchego de cada uma delas, garantindo seu bem-estar.
É importante destacar que a educação infantil deve ser um lugar divertido, de reflexão, de investigação, de aprendizagem e de aproximação com as famílias. Um lugar onde o educar e o cuidar são indissociáveis. Nesse lugar as crianças se apropriam de conhecimentos, vivenciam a imersão em sua sociedade, expressam-se e produzem cultura. Segundo o documento Práticas cotidianas na educação infantil: bases para a reflexão sobre as orientações curriculares (MEC/SEB, 2009), a educação infantil tem o objetivo de promover a convivência, “aprendendo a respeitar, a acolher e a celebrar a diversidade dos demais, a sair da percepção exclusiva do seu universo pessoal, assim como a ver o mundo a partir do olhar do outro e da compreensão de outros mundos sociais” (MEC/SEB, 2009c, p. 12). 
Sua primeira função é social, que consiste em educar e cuidar das crianças, em parceria com as famílias; sua segunda função é política, que consiste em promover direitos sociais e políticos das crianças, no exercício da cidadania; sua terceira função é pedagógica, que consiste em ser um lugar privilegiado de convivência e ampliação de saberes e conhecimentos de diferentes naturezas entre crianças e adultos, segundo o mesmo documento (MEC/SEB, 2009c, p.9).
De acordo com a legislação brasileira, a educação infantil é direito da criança a partir do seu nascimento, dever do Estado e competência dos municípios. 
Pensar em currículos para a educação infantil implica pensar na aurora que se anuncia para a educação das crianças, começando tal educação a definir-se como espaço para a criança viver a sua infância, brincar, socializar-se, aprender e ser feliz. 

¹  Mestre e Doutoranda em educação:currículo pela PUCSP, pesquisadora, formadora de professores.
² Descentralização como princípio regulador das políticas públicas em que o vetor de mobilização deixa de ser o Estado e passa a ser a sociedade.
³ Direito não somente declarado, mas que, além disso, prevê algum tipo de sanção em caso do não cumprimento.
4 Houve alteração na faixa etária da educação infantil. De acordo com a Emenda Constitucional n. 53, de 19 de dezembro de 2006, a faixa etária da educação infantil passou a ser até 5 (cinco) anos de idade. As demais seriam matriculadas no ensino fundamental. A Lei nº 11.274, de 6 de fevereiro de 2006, altera a redação dos art. 29, 30, 32 e 87 da Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as Diretrizes e Bases da Educação Nacional, dispondo sobre a duração de 9 (nove) anos para o ensino fundamental, com matrícula obrigatória a partir dos 6 (seis) anos de idade.
5 Dados referentes a 2009, a partir de uma pesquisa do MEC feita por amostragem nas cinco regiões do Brasil, sobre os materiais utilizados para a organização de propostas pedagógicas (MEC/SEB, 2009d).
Como citar trechos desse artigo: Conforme SILVA (2010)  “xxxx xxxx xxxx xxx”
Na referência bibliográfica colocar:
SILVA, V. A. Análise da implantação de um Currículo para a educação infantil. Dissertação (Mestrado em Educação: Currículo). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUCSP. São Paulo, 2010.

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